eu te amo
como no dia em que transamos e eu vi buda,
mas não consegui ver a mim mesma
então olhei fixo seus olhos grandes e meditei
a única coisa que tem em comum
todas as pessoas que amei demais são os olhos
maiores que os meus
castanhos nunca mudos
a perfeita visão do meu fundo do poço
confundo seus olhos com as fossas abissais
mergulho sem cilindro
nunca mais voltei daqueles olhos
eu te amo
como no dia em que fodemos e eu chorei feito uma criança
perdida no supermercado, sem saber aonde estava me perdendo
fiz um dilúvio no colchão
dois corpos jorrando lágrimas
entre arcas, anjos e demônios
todos os mitos modernos
perdidos nas valas desse corpo
mente, espírito eu seilá
ser humano é um troço estranho pra caralho
e olha que eu nem falo mais essa palavra
c a r a l h o
eu te amo
como no dia em que fizemos amor porque eu queria te colar no corpo
ignorando a minha libido caquética, essa que te faz sentir mal amado
e me rasga por tantos orifícios
eu quero que se fodam todas as minhas faltas
eu te amo
como quem ignora todas as superstições e parte
em direção ao precipício com uma vela acesa na mão
estudos poético-filosóficos
Esse semestre tentei me inscrever numa formação pra escritores famosinha de essipê. Bom, não passei, mas da frustração surgiu uma ideia. Devem começar assim as boas ideias e revoluções. Chegam a partir de um não, uma porta na cara, um pé na bunda, uma cova aberta. Na roda da vida tantos são os nãos possíveis quanto são os poros obstruidos que não consigo contar na pele.
A “iluminação” (rs) veio da seguinte forma, montar meu próprio cronograma de estudos. Aviso que será um cronograma caótico, cheio de desvios, mas quero compartilhar o caminho e pequenos trechos do que encontrar por aqui. Chamei esse projeto carinhosamente de estudos poético-filosóficos. Começo a partir da tese de doutorado de Danielle Magalhães — Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror – Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea. A obra está disponível na íntegra nesse link. Danielle começa se aproximando da ideia de amor para Lacan e achei que coube bem com os versos de hoje.
‘O amor se agarra nesse ponto de suspensão – que é um deslocamento: o deslocamento do “não” [Le déplacement de cette négation], o deslocamento da contingência – de quando algo que não estava escrito começa a se escrever –, para a necessidade, para o “não para de se escrever [ce qui ne cesse pas de ne pas s’écrire], não para, não parará” (LACAN, 1972-1973/1985, p.199).
[…]
Isso não é harmonioso, porque uma abordagem do ser pelo amor é uma abordagem da quebra, da fragmentação, da divisão, daquilo que se sustenta como uma parte, um pedaço, um resto, uma falha […]. Uma abordagem do ser como aquele que ama não é uma abordagem do ser, mas uma abordagem do ser roubado pelo amor: o ser que ama é um ser roubado. O ser como tal não é o ser: “O ser como tal é o amor que chega a abordá-lo no encontro” [La rencontre de l’être comme tel, c’est bien là que par la voie du sujet, l’amour vient à aborder] (LACAN, 1972-1973/1985, p.199). É um assalto.’
(MAGALHÃES, 2020, P. 21-22)
notas da poeta
A partir disso, reflito sobre o amor não como um laço, mas sim como uma rachadura. Escancarando um jogo de luz e sombra. Um lance, como traz Danielle. Também reflito nessa ideia de amor como o próprio processo de escrita ou qualquer processo artístico. Um deslocamento de sentido que encontra morada na mesma rachadura — “de quando algo que não estava escrito começa a se escrever”. “não para, não parará”. Um assalto.
‘O amor assalta o ser e aquele que ama se vê sobressaltado, na violência desse ponto de suspensão [point de suspension], na violência desse imprevisto, desse acontecimento pelo qual se é tomado. Acreditar no amor é crer nesse lance singular, nesse espanto, nesse arroubo.’
(MAGALHÃES, 2020, p.22)
Quero saber o que você achou dessa nova proposta. Fica muito denso? Eu deveria separar os estudos poético-filosóficos em outra edição? Me conta nos comentários, vou amar saber.
bjbjbj
Lara, adorei o poema e nele mergulhei. Intensidade é do que sinto falta nessa gente que escreve. Falta arroubo, assalto, rachadura (para a luz entrar e clarear situações ou caminhos a tomar). Falta vida. Cotidianice, bobice, roubo de goiaba do vizinho... Gente disposta a ouvir, contar; ouvir e rir; rir e ficar sem o que dizer...
Lacan e Cia servem para iluminar nossas vivências e dores e humores, não para serem reverenciados. Altar é para a intimidade. Criemo-los, mas deixemos bem escondido.
Misture tudo. Gostei muito.
Adorei o poema, Iara!
Muito, muito forte. Eu, particularmente, acho difícil escrever poemas de amor. Embora eu escreva alguns, acho todos meio ruins. Rsrs
A ideia do estudo… Fan.tás.ti.ca!!!
Tem um livro bem legal de uma lacaniana (que não fala tanto em lacanês) que fala sobre amor, chama: A gente mira no amor e acerta a solidão (uma coisa assim rsrs). A leitura é muito boa.
Até breve!