“o que te recitei à meia-noite | repetirá o cantor ao meio dia”
- Enheduana (2.250 aec)
I
pretendo assoprar a torre
ouvir o silêncio da queda
uma algazarra de línguas impossíveis
no entanto sigo empilhando palavras
há nesse ato algo de destruição
algo como construir um castelo de cartas
está fadado a queda
II
havia uma mulher no palco
sua língua se movia a um ritmo incessante
nesse dia decidi que não poderia voltar
ainda que não hajam trens nessa latitude
eu beijo Eva
e assumo toda responsabilidade
III
provisão divina
as palavras mais estranhamente bonitas
saem da tua boca feito o primeiro som do mundo
poetas de babel: patti smith e um novo nome
sim, mudanças. escrevo essa publicação desde 2022, já faz quase 3 anos. poderia escrever sobre todas as transformações, palavras, surtos, sonhos. poderia dizer que agradeço sua presença por aqui, e agradeço. sinto que aqui posso poder, essa palavra enorme, mas não é sobre isso. talvez seja sobre poder cair, o que é algo maior ainda.
a torre é a carta mais temida do tarot, confie em mim, é bem mais dramática do que a morte. tudo está desmoronando. ainda que esteja o tempo todo, é desesperador perceber nossa fragilidade. estou tentando tomar isso pra mim. sim, tudo está desmoronando, vou aprender a cair.
daí que “poesia delivery”, antigo nome dessa news, não cabia mais no verso. um dia escrevi um poema que veio com som e tudo mudou. como se de uma hora pra outra minhas línguas internas não se entendessem mais, havia algo de diferente que eu precisava decifrar. resultado, fui estudar música.
um dia um amigo músico me contou sobre quando estava numa sala com pessoas de diferentes nacionalidades, ninguém falava o mesmo idioma, mas conseguiam se comunicar através do som. música é linguagem e o primeiro passo pra aprender qualquer idioma é a escuta.
conheci a Patti Smith por conta da sua newsletter no substack. eu estava lendo uma antologia do Rimbaud na época e ela era uma coroa simpática que publicava versos e comemorava aniversários de poetas antigos. mal sabia eu que estava diante da poeta do punk, tamanha era minha ignorância. quando comecei a pesquisar sobre as relações milenares entre música, poesia e mulheres é claro que cheguei na Patti. devorei tudo que podia desde o famoso “Só Garotos”, que trata da história de sua carreira e relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, até encontrar o pdf de “Babel”, livro que mistura poesia, prosa, fotos e desenhos da artista. ironicamente, tal qual a história da torre babilônica, nenhum dos livros que guardam seus poemas foi traduzido para o português e eu nunca consegui terminar de ler Babel. estou tentando decodificar um pouco mais de seus versos através do som.
compartilho com vocês a primeira gravação de estúdio da poeta punk. um compacto onde o lado A é uma versão de Hey Joe e o lado B é um som-poema da Patti, Piss Factory (minha faixa favorita!!!!).
em “boletim babel” esperem versos (sempre), som e minhas pesquisas não lineares sobre a relação entre música e poesia na literatura. não sou especialista em nada, sou poeta. e repito: estou aprendendo a cair. talvez seja disso que se trate a vida, assim como o arcano XVI no tarot. bom, temos um post inaugural? acho que temos!
Música (uma mulher)
No convés, um cavalheiro entretinha alguns convidados em seus trajes de gala. Aulas de violão clássico, adoráveis, embora um pouco entediantes. M manteve-se a distância e inclinou a cabeça, deixando-se levar pela abstrata monotonia. As notas pareciam suspensas e prolongadas, acariciando o mar e a si próprio. Ele acenou do deque, mas não queria voltar para sua cabine.
Viu-se, então, no corredor de uma parte pouco explorada do navio. Vagou por baixo, seduzido pelo perfume de uma melodia familiar. Ficou, por um instante, diante de uma porta esmaltada de branco, em seguida agachou-se para ouvir. Depois de um tempo, foi carregado, as notas musicais o abraçaram, formando um casulo que o fez cair no sono.
Uma mulher abriu uma porta pesada e outra realidade. “Aqui é onde você deveria estar nesta noite” – a melodia respirou, separando suas roupas. E novamente ele foi envolvido.
Mais tarde, ele mal pôde suportar. Sentiu-se levemente adormecido e suas pernas ficaram enrijecidas. Havia uma canção em seu crânio. Sentiu-se vítima de alguma transformação maliciosa. Pressionou as amplas paredes curvas em busca de apoio e ficou aliviado ao voltar à cabine. Falhou ao não notar uma bota ao seu lado, mas ficou surpreso ao encontrar, no meio da cama, uma minaudière cheia de joias que, apressadamente, abriu.
- Patti Smith (Tradução Natália Agra)
extra:
até breve
com amor,
Lara, que edição maravilhosa!
Atravessar uma Torre é desafiador e necessário. Todos adoram o Sol e, de fato, é uma boa carta. Mas é na Torre que “a tapioca vira”! É a Torre que traz à tona a luz do que se é!
Boa sorte na sua jornada!
Poema lindo lindo…
Ansiosa para acompanhar suas experimentações com o som.
Até breve!