escapismos e memórias borradas
um escape em terras lusas, matilde campilho e outras nóias da rede
eu já morei em Portugal
foi uma época pálida
nunca tinha vivido um inverno decente
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
do outro lado do atlântico
nessa época venta muito
e eu sempre fui uma mulher pequena
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
suscetível a voos altos e arrastões
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
depois que venta faz frio
a rua fica silenciosa
a verdade é que eu andava triste
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
a verdade é que eu já fui meio triste
atravessei oceanos
em busca de alguma coisa
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
tal qual os ancestrais que tento abominar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu andava fugindo, flanando
pelas ruas e vielas de paralelepípedos e azulejos portugueses
se come bem em terras lusas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
fiz alguns amigos tugas
e uma tatuagem escrito “zuka”
pra lembrar de onde eu vim
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
como se fosse possível esquecer
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
esses dias andei pensando,
a real é que todas as relações devem ser mesmo por interesse
talvez porque aquela pessoa gosta das mesmas músicas e você finalmente vai ter alguém pra conversar sobre aquela artista meio underground que nem todo mundo conhece
isso vai te fazer sentir menos estranha e talvez mais cult quem sabe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
aqueles amigos só queriam me comer
quem sabe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
é difícil saber de tudo
me irrita a minha falta de precisão
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
opinião flutuante feito uma bóia de melancia comprada na uruguaiana
pra usar naquelas piscininhas de plástico que não enchem na hora H
as vezes me orgulho por não ter tantas certezas
afinal, a certeza é uma ilusão?
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu escrevo pra fingir que sei das coisas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
naquele quarto no bairro do intendente eu tinha muita insônia
e escrevia, quase todo dia
eu fumava num cachimbo rosa na tentativa de que a erva me levasse ao mundo dos sonhos
acontece que morfeu nunca foi meu amigo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu viajava numa tentativa de escapar
de alguma coisa, da angustia
de saber que não se sabe
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
nessa época eu ainda bebia muito
eu bebo desde os 14 anos
aos 16 eu já bebia mais do que deveria
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
com 20 e poucos era o hype do gin tonica
batia quase como um absinto
um apagão, de fato um escape
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
a mente é uma coisa doida
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
o fato é que aquele combo
me fez acordar com o corpo metade fora da cama
sem a lembrança de como cheguei ali
falta de documentos
e uma vizinha de porta preocupada
numa manhã de domingo
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
a sorte é que eu tinha uma vizinha de porta que me oferecia chá
ou era eu quem oferecia o chá
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
memória é uma coisa falha
a gente lembra do jeito que a gente quer lembrar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu lembro dela num elevador no rio
anos antes, eu não sabia seu nome
mas eu lembro da tatuagem de lua no braço
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
acontece que a minha memória é muito boa
mas só as vezes
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
teve um dia que eu coloquei a roupa preta mais decotada que eu tinha, fiz uma maquiagem meia boca joguei um casaco por cima e saí
era véspera de helloween e meu aniversário
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu sempre odiei o dia das bruxas
as pessoas insistiam que seria uma boa ideia comemorar meu dia com temas mórbidos
eu nunca gostei de sentir medo
nem nunca entendi o sentido
de se fazer sentir medo
de propósito
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
porém, entretanto
eu gostava do meu aniversário
e hoje acho que simpatizo mais com as bruxas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
o decote deixava a mostra a tatuagem de rosa que eu tenho entre os seios
o corpo é essa coisa estranha
eu me tatuo pra marcar memórias
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
quem sabe eu me lembre que na época que eu fiz a rosa
eu precisava me amar mais
e que falei pra tia graça que era porque ela gostava de rosas e aí passou a me lembrar dela também
mas o segurança da boate
só viu a rosa e os meus peitos pequenos naquele decote
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
ficamos na área VIP naquele dia
o que de maneira nenhuma faria com que encontrássemos pessoas mais interessantes
mas pelo menos tinha espaço pra dançar
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
pelo menos uma vez eu tinha que usar o meu sotaque brasileiro pra alguma coisa que não construir amizades frágeis em pontes de papel
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
as vezes o passado parece uma miragem
me vejo quase como uma dissociação
eu me pergunto se essas memórias são mesmo minhas
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu lembro de quando eu cheguei
e do por do sol no mirante
lá só tinha brasileiro
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
eu dizia que não tinha saído do Brasil pra fazer amizade com brasileiro
mas a verdade é que lá eu me sentia em casa e também foi lá que eu consegui um lar quando meu faltou
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
a luz de Lisboa é uma parada surreal
e se essa memória não era minha
passou a ser
porque eu fotografei
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
o pastel de nata saindo do forno e os amigos do mundo que fiz por interesses menos carnais
do Brasil à Turquia
do Rio de Janeiro à Europa
tem muito chão e oceano
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
dizem que até as partículas de água guardam memória
e se tem uma coisa que eu nunca vou me esquecer
é da cor daquela luz
batendo nos olhos da cidade
poesia-mulher: matilde campilho
Brasil e Portugal ainda se cruzam, constantemente, de cá pra lá, de lá pra cá e apesar dos muitos pesares, eu acho o Português uma língua muito bonita.
o meu poema favorito da matilde virou esse aqui
Dançar sobre os escombros
⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
A gente é construção
e não adianta fingir.
A gente está aqui neste lugar lindo,
com pessoas lindas, incríveis,
mas o mundo está todo arrebentado.
Aqui, na Europa, na Síria,
nos nossos quartos,
está tudo difícil (...)
A poesia, a música, uma pintura
não salvam o mundo.
Mas salvam o minuto.
Isso é suficiente.
A gente está aqui
para dançar um pouquinho
sobre os escombros.
Não deixar que a poeira
dê alergia nos olhos.
Cada um faz como pode.
O cirurgião vai tentar salvar
todas as vidas que puder.
A gente vai tentando salvar os segundinhos
- da minha vida, da vida
de todos meus amigos
e de alguém que lê uma estrofe.
E já é bom.- Matilde Campilho
sobre a atualização do substack e seus estardalhaços:
trilha sonora
espero seguir salvando alguns minutos, criando respiros mais longos, seila, qualquer coisa que um poema possa causar
você pode se inscrever na newsletter pra receber mais:
um abraço com cheiro de pastel de nata saindo do forno,
bjbjbj
Lara do céu, você faz poemoterapia de alto impacto! O que você escreve lembra patchwork. Os pedaços podem ser esquisitos, mas de sutura em sutura você vai reconstituindo-se. Trabalho invisível, é certo. Poucos conseguem enxergar. Todo poeta se reconstrói. Isso dói, mas o prazer de insistir&ser e refazer-se a cada instante é próprio de quem se aventura. Ah, gratíssimo por me apresentar a Matilde Campilho. Figuraça! Uma delícia ouvi-la. É isso. Continue. Aguardo sua próxima sessão de poemoterapia de alto impacto... Já tens com o que te cobrir. Estenda a nós suas colchas, por favor!